Como educar uma geração hiperconectada?

Amanda Fonseca
9 min readDec 1, 2020

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Entender que a internet pode ser uma ferramenta aliada ao ensino parece ser um dos primeiros passos, mas vai muito além disso

A tecnologia revolucionou todos os âmbitos da sociedade, mas alguns professores ainda resistem a ela (Foto: NeONBRAND)

Muara Kizzy já é professora de Geografia há quase 15 anos. Ela enxerga as mudanças com relação ao uso da tecnologia e da internet pelos seus alunos e não parece ficar alheia a este comportamento — pelo contrário, ela quer entender e incorporar recursos facilitadores para o aprendizado, sem perder o contato com os estudantes. Foi assim que resolveu levar a página Gifs Educativos para a sala de aula.

Não é de hoje que Muara faz do comportamento online dos seus alunos objeto de estudo, mas não para ela e sim para eles mesmos. Ano passado foram os memes, este ano foi a vez dos gifs.

Conversamos com ela sobre novos modelos de ensino, a relação professor-aluno em tempos de redes sociais e muito mais e você confere os principais trechos da conversa abaixo.

Muara: Como eu sei que eles gostam, eu estou sempre procurando algo para usar em sala de aula, até para entender o que eles falam, porque é outro idioma. Como estou sempre procurando memes, os Gifs Educativos apareceram na minha timeline.

Pedi para fazerem 3 gifs, dois gifs educativos e um de humor com o conteúdo do bimestre. A escola ainda não está preparada para este tipo de avaliação, tive que pedir um trabalho escrito de suporte. Uma pesquisa sobre como eles fizeram esses gifs e a nota foi dividida meio a meio. Eles gostaram de fazer, eu gostei de avaliar, me diverti bastante.

Muara Kizzy é professora de Geografia e mestra em Estudos Culturais pela USP (Foto: Reprodução/Facebook)

A Tradicional Escola Brasileira

É perceptível a disparidade do ensino público e privado no Brasil. Enquanto o primeiro sofre com a falta de recursos, o outro já está incorporado em uma lógica de mercado focada em resultados. Grandes números são a avaliação das grandes instituições. Quantos aprovados estarão nos outdoors depois de tudo isso? E assim, caminhos alternativos para o conhecimento podem não ser tão bem vistos por algumas delas, mesmo que os resultados pareçam positivos.

Muara trabalha em dois colégios particulares na zona leste de São Paulo. Contudo, são dois cenários distintos, inclusive na recepção dos seus métodos como professora. Segundo ela, uma das escolas é pequena, tem um currículo preocupado com a humanização e atende a classe C até B menos. Do outro lado, uma grande empresa que atua do ensino fundamental até a graduação, focada na classe B até A menos. “No meio da periferia, no bolsão de pobreza, existem essas rugosidades de riqueza”, afirma a professora.

Muara: Esse trabalho [com gifs] todo mundo fez e entregou no prazo. Eles foram bem na avaliação, não tive nenhuma nota abaixo de 7. E a prova escrita foi com o mesmo conteúdo e eles foram bem também. Mas não posso mensurar se foi por causa dos gifs ou por ser o terceiro bimestre.

[Na primeira escola] gostaram muito, a dona/diretora da escola adorou, quis ver os gifs. Ela não entendeu muito bem, mas achou maravilhoso.

A [outra] escola não gostou muito. A gente fez o aluno pesquisar e usar algo do cotidiano dele em uma linguagem que ele conhece. A escola não entendeu que é uma forma diferenciada de avaliação que pode levar a um maior engajamento dos alunos. É uma escola mais tradicional, focada no vestibular, bem mais conteudista.

Caderno é coisa do passado, agora a moda é…

Sim, a tecnologia mudou a educação e a internet transformou ambas. Aqueles trabalhos feitos em folha almaço com a pesquisa das enciclopédias, ilustrados pelos xerox dos livros estão no passado. Tudo bem old school, literalmente. A “nova escola”, ou melhor, a nova rotina educacional é composta por telas que despertam mais a atenção que uma lousa e um giz, mais indispensáveis na vida dos estudantes que uma caneta e um caderno.

Infelizmente, tem muita gente acha que a sala de aula precisa ser igual as dos século 20 (Foto: Austrian National Library)

Muara: Outro dia, enquanto eu estava explicando a matéria, um aluno estava com celular e ele estava jogando. Enquanto outra pessoa estava usando o celular para anotar o que eu estava falando. Os alunos não copiam mais nada da lousa, eles tiram foto. Vou falar o quê? Até eu quando era adolescente, se tivesse esse recurso, eu não teria nenhum caderno. Eu teria só as fotos catalogadas por data. Eles usam a tecnologia e eles vão usar mesmo, eu preciso ir me adequando. Preciso ensinar como ele vai usá-la em sala de aula.

Mas qual o limite e a eficiência da tecnologia na educação?

Para a professora, primeiro é preciso compreender que existem diferentes tipos de alunos, cada um tem uma forma de aprendizado e é necessário observá-los e orientá-los.

Muara: As pessoas entendem muito que a tecnologia é uma ferramenta, que pode auxiliar na sala de aula. Eu também entendo, mas se você não trabalha bem a tecnologia, ela só aumenta o ruído em sala de aula. Eu vejo muitas escolas dizendo: nós temos tablets…Tá, ok! Mas se você não tem um profissional que ensine de fato a usar a tecnologia como uma ferramenta, não adianta absolutamente nada. São ferramentas, o contato professor-aluno precisa ser nossa garantia de um processo de ensino e aprendizagem bem produzido. Eu preciso ensinar que existem outras formas de diálogo para uma pessoa que nasceu e deram um celular na mão dela. Ela precisa entender que a tecnologia é uma ferramenta, mas não é essencial, existem outras formas de se relacionar com os seres humanos.

“A melhor forma do aluno aprender ainda é você despertar a curiosidade e ele ir atrás da informação”

Muara: Uma coisa que eu percebo é que todos eles gostam de pesquisar, algo chama a atenção deles e eles vão atrás de pesquisas.

Eu costumo falar que ninguém sabe mais que o Google. Então por que eu estou lá se o Google sabe mais do que eu? O aluno precisa aprender a criticizar a informação que ele recebe. Ele tem acesso à informação, mas ele precisa desenvolver o senso crítico. Eu sempre falo ‘se eu falar que se você não prestar atenção em mim, você não vai bem na prova, é mentira’. Você pode assistir uma videoaula, você não precisa de mim para aprender. Mas eu sou uma ferramenta que você pode utilizar em seu benefício. Se você tiver dúvida, eu posso te ajudar. Vai além de eu te ensinar e você aprender, nós vamos aprender juntos.

Se tá na internet é verdade?

Fofocas, boatos, notícias falsas, nada disso começou com a internet. Mas em uma sociedade online, a disseminação tornou-se imediata e as consequências incontroláveis. E se o Google sabe tudo, ele também pode te ajudar a não saber nada. Como professora, Muara tenta mostrar a melhor forma para os seus alunos buscarem conhecimento.

Esse folder é perfeito para divulgar para os adultos que ainda caem nas temidas fake news ;)

Muara: Você quer dados oficiais? Vá atrás de sites oficiais. Procura a grande mídia mesmo, gente que se por um acaso, se alguém colocar uma notícia falsa, você tem quem processar. Procure uma empresa, um veículo que tem uma reputação a zelar, que se ele passar uma notícia falsa, a imagem dele pode ser abalada. Mas também não dá para procurar só um site da grande mídia, procure vários. Se você procura a informação em um site, você só vai saber o viés daquele site. Toda empresa tem um público, ela vai modular a notícia para aquele público. É isso.

Eu faço isso com o terceiro ano do Ensino Médio, a gente compara a mesma notícia em diversos sites. Eu trabalho estatísticas e gráficos, como eles podem transmitir uma informação que nem sempre é correta.

Eu ainda estudo e o que eu percebo é que a formação do professor não é uma formação bacana. Ele sai da faculdade e não sabe o que vai ensinar. E aí o próprio professor compartilha notícias falsas. Eu fico com vergonha de alguns professores.

Acesso não é conhecimento

Uma das perguntas feitas a Muara foi sobre o entendimento que o acesso à internet pode diminuir desigualdades, como expõe a organização Internet Society em sua lista de “5 Prioridades para A Internet e Educação”.

Muara: É um assunto polêmico, porque eu acredito que você dar acesso não significa que você está ensinando a usar a ferramenta de forma adequada. Por exemplo, o sujeito tem acesso à internet, mas ele vai receber uma informação falsa e vai acreditar naquilo, porque ele nunca foi ensinado a pensar criticamente, a avaliar a informação que ele recebeu e questioná-la. Eu acho importante sim ampliar o acesso à internet, à telefonia, mas a gente também precisa investir na educação de base. Leitura, escrita, desenvolvimento de senso crítico, ensino de História, Geografia. Eu dei aula no Estado, eu vejo que meu aluno de Ensino Médio do Estado tinha o mesmo conteúdo que meu aluno do sexto ano da escola particular. A defasagem era muito grande.

Não adianta querer que um adulto tenha senso crítico, se ele nunca foi ensinado a isso. Para este sujeito, o mundo se resume ao ambiente que ele vive.

Jornada 24/7

A carga horária, normalmente, exaustiva de um profissional da educação parece se estender ainda mais na era das redes sociais. O sinal bateu, a apostila fechou, mas a relação professor-aluno não acaba por aí.

Muara: Meus alunos me seguem em todas as redes sociais possíveis. Normalmente, eu compartilho os gifs e eles comentam, replicam. Em sala de aula, como a gente trabalha com o sistema apostilado, às vezes não dá tempo. E em sala de aula o aluno presta atenção? Presta…mas ele realmente te ouve fora da escola. Meu aluno me dá muito mais atenção no Facebook, no Instagram do que em sala de aula.

Aqui você encontra Muara em um bate-papo sobre a vida de professor

Quando eu comecei em 2005, as pessoas tinham celular, mas ele não fazia parte dos membros das pessoas. Por mais que as pessoas usassem, não era tão presente como hoje. Além disso as redes sociais não eram uma realidade. Hoje uma das coisas que eu percebo, é que eu não sou mais professora no ambiente físico, acabou minha aula e não sou mais professora. Eu sou professora fora da sala de aula também, eu tenho alunos 24 horas me mandando mensagem.

Neste ponto da nossa conversa, Muara levantou uma questão interessante e que vai além da educação formal: as relações de afeto. Todo adolescente tenta criar nessa fase, tão incerta, algumas conexões. A internet parece auxiliar muitos deles nesse sentido e faz parte do processo de desenvolvimento, que vai moldá-los como adultos. Sem maniqueísmos, os efeitos podem ser diversos e a família tem sua responsabilidade.

Muara: Muitos alunos não tem contato com os pais, podem até ter, mas não tem aquele diálogo. E muitas vezes, ele tá te chamando para falar sobre a matéria e de repente, tá falando sobre assuntos aleatórios. Existe uma carência, às vezes. Na sala de aula, eu tô com mais 30 pessoas, ele acredita que naquele momento que eu estou conversando com ele via rede social, eu estou conversando diretamente com ele. Eu não deveria ser o ponto de apoio dessas pessoas, deveriam ser os pais.

A tecnologia mudou a forma como a gente precisa se comportar como professor, você não é mais professora na sala de aula, durante 50 minutos. Você é professora, de fato, agora 24 horas por dia, inclusive nas suas redes sociais. Você precisa prestar atenção no que você compartilha, no que você comenta. Eu entendo que ser professor extrapola o conteúdo, extrapola eu ensinar Geografia. Você tem que ensinar postura, cidadania, empatia. Você tem que ser um exemplo positivo. Às vezes você é o único exemplo positivo na vida dessa galera.

Este texto foi publicado originalmente pela Agência Cative! e faz parte de uma colaboração minha com este time de mulheres especialistas em comunicar o propósito de marcas visionárias e humanizadas.

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Amanda Fonseca

jornalista, feminista, impulsiva, sincerona. Meu medo é não poder mudar de roupa, de cabelo, de lugar e de opinião.